Afeganistão e cultura, um problema de todos nós!

Acredita-se que mudanças políticas e econômicas de uma nação seja de interesse público local apenas. Em um mundo confusamente globalizado pela internet, os impactos são imediatos e preocupantes. Por isso, a cineasta Sahraa Karimi, demonstra excesso de coerência humanitária ao escrever carta aberta à imprensa internacional pós golpe terrorista no Talibã.

Na última semana, muito tem se discutido sobre o retorno do Talibã ao poder no Afeganistão após vinte anos. Para quem não entende muito bem sobre o tema, é importante saber primeiro, o que é o Talibã!

Talibã é um grupo extremista que surgiu há três décadas e governou o Afeganistão entre 1996 e 2001, ano em que foi expulso do poder por forças lideradas pelos EUA. Eles foram armados pelos norte-americanos e treinados pelo Paquistão, com o objetivo de impor sua própria interpretação da Lei Sharia.

Os impactos econômicos internacionais são gigantescos. A retomada do grupo ao poder coloca em pauta relações que, muitos acreditavam, estar minimamente em um terreno tranquilo. Principalmente em relação aos Estados Unidos. Mas, pessoas vivem no Afeganistão e nem tudo é relação política e econômica. Estamos falando de um país que avançou culturalmente nos últimos vinte anos. Um povo que pôde desbravar ideias, possibilidades e se expressar para o restante do mundo. E isso, pode estar a um fio de ser destruído, voltando à estaca zero novamente.

A cineasta Sahraa Karimi trabalhou em uma carta aberta à imprensa internacional, pedindo apoio aos males causados pelo golpe. Cultura, educação, religião, política e militarismo… são áreas diferentes, mas que se misturam por darem vida à expressão e liberdade de cada um dos habitantes daquele país.

Sem mais, leiam a carta e compreendam: o problema do Afeganistão, é um problema de todos nós.

“A todas as comunidades de cinema do mundo e a quem ama filmes e cinema,

Meu nome é Sahraa Karimi, diretora de cinema e atual diretora-geral da Afghan Film, a única empresa cinematográfica estatal no Afeganistão, fundada em 1968.

Escrevo a você com o coração partido e uma profunda esperança de que possa se juntar a mim na proteção de meu belo povo, especialmente os cineastas do Talibã.

Nas últimas semanas, o Talibã conquistou o controle de muitas províncias. Eles massacraram nosso povo, sequestraram muitas crianças, venderam meninas como noivas para seus homens, assassinaram uma mulher por seu traje, torturaram e assassinaram um de nossos amados comediantes, assassinaram um dos nossos poetas e historiadores, assassinaram o chefe da Cultura e dos meios de comunicação do governo, têm assassinado pessoas afiliadas ao governo, enforcaram publicamente alguns dos nossos homens, deslocaram centenas de milhares de famílias.

As famílias seguem acampadas em Cabul após fugirem dessas províncias e estão em condições insalubres. Há saques nos acampamentos, e bebês estão morrendo por não terem leite. É uma crise humanitária, mas o mundo está em silêncio. Acostumamo-nos a este silêncio, mas sabemos que não é justo. Sabemos que essa decisão de abandonar nosso povo está errada, e que essa retirada precipitada das tropas americanas é uma traição ao nosso povo e a tudo o que fizemos quando os afegãos venceram a Guerra Fria para o Ocidente.

Nosso povo foi esquecido. Agora após vinte anos de ganhos imensos para nosso país, especialmente para nossas gerações mais jovens, tudo pode ser perdido novamente neste abandono.

Precisamos de sua voz. A mídia, os governos e as organizações humanitárias mundiais estão convenientemente em silêncio, como se o tal ‘acordo de paz’ com o Talibã fosse legítimo. Nunca foi legítimo. Reconhecê-lo deu-lhes confiança para voltar ao poder. O Talibã tem brutalizado nosso povo durante todo o processo das negociações. Tudo o que trabalhei muito para construir como cineasta em meu país corre o risco de acabar.

Se o Talibã assumir o controle, eles vão banir toda a arte. Eu e outros cineastas podemos ser os próximos em sua lista de alvos. Eles vão tirar os direitos das mulheres: seremos empurrados para as sombras de nossas casas e de nossas vozes, e nossa expressão será abafada no silêncio. Quando o Talibã esteve antes no poder, nenhuma menina frequentava escolas. Desde que o grupo deixara o controle do país, mais de 9 milhões de meninas afegãs se matricularam na escola. Isso é incrível. Herat, a terceira maior cidade que acabou de ser dominada pelo Talibã, tinha quase 50% de mulheres em sua universidade. São ganhos incríveis que o mundo mal conhece. Nessas poucas semanas, porém, o Talibã destruiu muitas escolas, e 2 milhões de meninas foram forçadas a deixar a escola novamente.

Não entendo este mundo. Não entendo o silêncio (do mundo). Vou ficar e lutar pelo meu país, mas não posso fazer isso sozinha. Preciso de aliados como você. Ajude-nos a fazer com que o mundo se preocupe com o que está acontecendo conosco.

Ajude-nos informando aos meios de comunicação mais importantes de seus países o que está acontecendo aqui no Afeganistão. Sejam nossas vozes fora do Afeganistão. Se o Talibã assumir o controle de Cabul, talvez não tenhamos acesso à internet ou a qualquer ferramenta de comunicação. Por favor, envolva seus cineastas e artistas para nos apoiar e ser nossa voz. Esta guerra não é uma guerra civil. É uma guerra por procuração, é uma guerra imposta. Por favor, compartilhe este fato com sua mídia e escreva sobre nós em suas redes sociais. O mundo não deve virar as costas para nós.

Precisamos do seu apoio e da sua voz em nome das mulheres, crianças, artistas e cineastas afegãos. Esse apoio seria a maior ajuda de que precisamos agora.

Por favor, ajude-nos a fazer com que este mundo não abandone o Afeganistão. Por favor, ajude-nos antes que o Talibã assuma o controle de Cabul. Temos tão pouco tempo, talvez dias.”

Eu sei que, muitas vezes, enxergamos conteúdos de entretenimento na vida real e isso faz com que nossa mente questione a realidade em que existimos. Tenho recebido muitas mensagens através das redes sociais de pessoas que acreditam estar “assistindo um episódio de péssimo gosto da série The Handmaid’s Tale”. Sinto lhes informar que não se trata da história de Margaret Atwood. O país em questão, não é o mesmo da história ficcional. No Afeganistão, as pessoas não retornarão para suas casas depois de um dia de sangue falso no rosto, devido à maquiagem. Ali, vidas estão sendo desperdiçadas todos os dias. Uma cultura está sendo assassinada. E sim, é da conta de todos nós.

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