Queernejo, muito mais do que uma versão LGBTQIA+ do sertanejo

Você já ouviu falar do Queernejo? Provavelmente não. Caso seja um dos felizardos que já teve oportunidade de conhecer esse estilo musical, certamente sabe do que estamos falando. Em ascensão no Brasil, a junção do queer com o sertanejo vem crescendo a cada dia mais. Em um universo paralelo em que a pandemia do coronavírus não existia, até mesmo o primeiro festival de queernejo já estava com data marcado. O Fivela Fest aconteceria em 19 de junho, trazendo grandes nomes do gênero.

Mas afinal, o que é o queernejo? Para responder essa pergunta, convidamos alguns dos grandes nomes da música queerneja brasileira. Gabeu, filho do cantor Solimões, foi o responsável por idealizar o festival ao lado de Gali Galó, com quem também tivemos a oportunidade de conversar.

Gali Galó

Para ela, o queernejo vai muito além do que simplesmente uma vertente do sertanejo, ou ainda um sertanejo para o público LGBTQi+. A palavra foi lançada no Google no final de 2019, durante a Semana Internacional da Música.

“Sempre gostei de sertanejo, até o dia que olhei pra ele e me dei conta que ele não me representava. Isso foi na minha adolescência – em Ribeirão Preto. Quando fui cantar profissionalmente em São Paulo, o sertanejo não passou pela minha cabeça. Demorou cinco bons anos de carreira pra eu perceber que se esse sertanejo não existia, eu teria de reinventá-lo. Eu já estava no movimento de voltar pro gênero quando fiquei sabendo do Gabeu. Pensei: o Queernejo tá nascendo e é pra lá que eu vou. Mandei mensagem pro Gabeu e ele entendeu tudo na mesma hora. Nos juntamos e lançamos o Fivela Fest, o primeiro festival Queernejo do Brasil.”

Perguntada sobre uma possível definição da palavra Queernejo, Galó foi ainda mais além:

Estou definindo o Queernejo como a Contracultura do Sertanejo. É um lugar que não tolera machismo, homofobia, transfobia – tudo o que vemos no sertanejo ainda hoje. Nosso maior público é do cenário independente e não do mainsstream. Por que será? Diferente do Feminejo que não levanta a bandeira do feminismo deliberadamente, nós somos puramente a nossa causa é só chegamos aqui por causa dela. Nosso papel com o Queernejo é desconstruir as narrativas e os esteriótipos de gênero que pregam o tradicional sertanejo. Queernejo pra mim é resistência. É ter a coragem de voltar pra casa e dizer que aprendeu algo novo.

A cantora por trás do clipe de Fluxo lançará ainda essa semana seu mais novo sucesso single, Caminhoneira.

Reddy Allor

Após se descobrir e se assumir gay, a vida de Guilherme dentro do universo do sertanejo mudou. Enquanto o caminho natural era formar uma dupla sertaneja, o que fez com o irmão Gabriel, Guilherme adentrou o universo do queernejo e vem fazendo muito sucesso lá dentro. Mas ele atende por outro nome desde que a arte drag entrou em sua vida. Para conhecer Tira o Olho, seu single com quase 40 mil views no YouTube, procure por Reddy Allor. Você certamente não vai se arrepender.

Eu sempre tive o sertanejo presente na minha vida. Cresci cantando com meu irmão e aos doze anos comecei a cantar profissionalmente com ele numa dupla sertaneja (Guilherme e Gabriel) e assim vivemos por 7 anos até eu me descobrir e assumir gay. A partir daí tudo mudou muito rápido; a arte drag chegou na minha vida pra somar o meu lado criativo com o meu lado musical e como minha verdade sempre foi o sertanejo não tinha como eu fugir da minha essência. É o que eu amo fazer e chegou pra mim de forma totalmente natural.

A respeito do nome escolhido, a resposta pode ser percebida no clipe abaixo. O vermelho com certeza está presente na vida de Reddy:

Reddy Allor tem tudo a ver com vermelho! O nome surgiu pelo fato da cor natural do meu cabelo (ruivo) no qual eu não gostava até então por traumas da infância e resolvi usar disso como resistência. Além de ser o meu nome artístico, hoje eu amo a cor do meu cabelo. Tira o Olho tem sim muito vermelho proposital e o significado maior é a força que isso me traz.

Alice Marcone

Alice Marcone é mais um dos grandes nomes do queernejo no Brasil. Ela é atualmente a única pessoa trans cantando sertanejo, o que em um país tão diverso e populoso como o nosso é um verdadeiro absurdo. Você já parou para pensar o motivo disso? A resposta não é difícil, mas deixaremos Alice responder por nós.

Até onde eu sei, agora eu sou a única pessoa trans cantando sertanejo. Espero de verdade que isso mude – e até que eu esteja enganada -. Travestis, mulheres e homens trans sertanejos do Brasil, se vocês estão lendo isso, por favor me mandem agora o trabalho de vocês! Quero saber quem são, onde vivem e já organizar o feat. Meus fluxos de produção estão bem diferentes do que eu esperava, por conta da pandemia. Mas eu já estou com a próxima faixa pronta e trabalhando para conseguir lançá-la na segunda quinzena de Agosto. Rolam os boatos de que é uma parceria com outro artista do queernejo.

Sobre suas referências dentro da música, alguns nomes conhecidos surgiram, enquanto outros você precisa urgentemente conhecer.

Acredito que les artistas que compõem o queernejo (Gabeu, Zerzil, Gali, Reddy Allor, Bemti, entre outros….) tenham opiniões bem diferentes sobre isso, então falarei apenas minha perspectiva. Quando penso no meu trabalho em particular, minha intenção é me manter musicalmente bem próxima do sertanejo universitário de hoje em dia.

Minhas referências musicais para o meu trabalho são do sertanejo tradicional. Admiro muito a musicalidade do Luan Santana, por exemplo, que mistura muito bem o sertanejo universitário tradicional com timbres e instrumentos do pop e outros ritmos mais urbanos. As sofrências ao mesmo tempo empedradas e vulneráveis das rainhas do feminejo como Marília Mendonça e Yasmin Santos também influenciam muito o jeito que penso em abordar e construir as melodias, tons e letras das minhas músicas. Sou fã de representantes do sertanejo de raiz também, como Pena Branca e Xavantinho, Tião Carreiro e Pardinho e Almir Sater, apesar de entender que essa musicalidade não tem tanto a ver com o que estou fazendo agora.

Como se tudo não fosse suficiente, Alice ainda nos deu uma aula sobre o seu Queernejo:

Por mais que musicalmente – e até tematicamente, pois continuo falando sobre amores e dores de cotovelo e sofrências doídas – o meu queernejo possa se aproximar muito do sertanejo universitário tradicional, o que tem de diferente no meu trabalho é justamente o fato de eu ser uma mulher trans. Eu acho que isso tem implicações estéticas e políticas muito fortes que invariavelmente trazem para o sertanejo linguagens novas: como o vogue, por exemplo, que está presente na coreografia do videoclipe de “Noite Quente” e é uma linguagem muito marcada historicamente como algo da cultura negra e LGBTQIA+.

Na construção do imaginário de uma mulher trans/travesti negra ocupando o sertanejo, a imagem e a narrativa tornam-se ferramentas muito importantes. Eu quero que as pessoas VEJAM que o que está sendo feito é algo diferente, apesar de soar muito natural ao sertanejo quando apenas escutamos a música. Portanto, é justamente aí que eu vejo a minha revolução dentro do sertanejo. Minha atuação é forte como roteirista audiovisual – já tendo trabalhado em séries para HBO, Amazon Prime, Canal Brasil e etc -, sinto a necessidade de que, junto da música, o meu trabalho carregue uma proposta visual e narrativa densa.

Dono de uma voz poderosa e com alguns de seus sucessos do pop já presentes no Spotify, Zerzil é mais um dos nomes do queernejo brasileiro. Seu clipe de Garanhão do Vale já ultrapassa 50 mil visualizações no YouTube. O cantor aproveitou para comentar um pouco sobre sua rotina dentro e fora do período da pandemia do coronavírus. Para quem não sabe, Zerzil divide o microfone com o trabalho de médico.

O meu trabalho autoral tende a ser bem autobiográfico. Meu primeiro álbum refletia o que eu tinha vivido até ali, eu acho um disco bem pós-adolescente na verdade, de alguém que acabou de sair da casa dos pais, está descobrindo a sua sexualidade, mas ainda ainda jogava Pokémon e era apaixonado por Harry Potter, por isso um disco tão geek. Nessa época eu tinha uma aversão ao sertanejo, por causa do machismo e da homofobia implícitos no meio.

Mas a vida nos reserva surpresas. Após me apaixonar pela primeira vez e me mudar pra São Paulo por causa desse amor, sofri um dos piores términos possíveis (ele terminou comigo por whatsapp). Nesse momento, apenas um estilo musical me entendia e expressava a dor que eu sentia: o sertanejo. A partir daí eu só consegui escutar sertanejo, principalmente sofrência, com uma leve identificação maior com as cantoras femininas, é claro. Como eu só escutava sertanejo, consequentemente eu só consegui compor sertanejo, e compor essas músicas foi a forma que encontrei de superar a dor de cotovelo. Eu compunha essas músicas por prazer, ou talvez por necessidade

Durante a pandemia, a vida de Zerzil sofreu alguns impactos, mas não sem deixar de lado a vertente artística.

Em minha vida nunca fiquei preso em uma só coisa, sempre conciliei os estudos de música com os de medicina, depois de formar nas duas áreas, segui conciliando as carreiras. Hoje trabalho durante três dias da semana como médico e os outros quatro dedico às artes, além de estarmos gravando duas músicas no momento e produzindo um clipe inteiramente virtual, gravado no Minecraft, também estou me formando em cinema, curso que resolvi fazer para aprimorar meus clipes.
A música é tanto refúgio para momentos de crise como esse, como também pode ser um manifesto contra os absurdos políticos que estamos vivendo.


A música é entretenimento, mas também pode ser revolucionária, tanto sendo explícito em letras políticas, ou mesmo quando artistas queers assumem um lugar que era de alguma forma vetado a eles. Se a música é seu sonho, escute, estude, cante, toque, treine… “A prática leva a perfeição” é um ditado que funciona na música como em nenhuma outra área, só nunca se esqueça de defender o que você acredita. Temos muitos artistas incríveis em vários estilos musicais, aprenda o que você tiver que aprender com todos eles, escute de tudo, sem preconceitos. Não importa com qual estilo você queira trabalhar, quanto mais você beber das diversas formas de arte, mais ferramentas você terá para expressar a sua própria verdade.

Não deixe de conferir todos os sucessos do Queernejo, já disponíveis em todas as mídias digitais.

LEIA MAIS SOBRE MÚSICA